Revisitando o populismo e o maquiavelismo varguista.
A doutrina do corporativismo não nasceu com o século XX. No Brasil da chamada "Era Vargas (1930 e 1945), respondeu aos anseios de um governo que pudesse garantir direitos aos trabalhadores mas de tal forma que a ele ficassem adstritos, em que o Estado pudesse ser visto como benfeitor, objetivando privar os assalariados de armas revolucionárias, e contê-los dentro de uma política trabalhista que mascarava a força, a manipulação e a coerção.
Com o discurso de que o trabalhador era parceiro do Estado, e tendo os sindicatos como força de contenção e pacificação, Vargas lançou mão de um estratagema que não visava a construção da plena cidadania e dos direitos do operariado. Não se pensou em uma ideia mais ou menos límpida de Estado de Bem-Estar Social (havia seleção programada, as garantias não seguiram como um todo o corpo da nação); o caminho para a "paz social" trilhou pela adoção do engodo: o trabalhador recebeu o status de filho capaz de reconhecer sua paternidade sacra. Não esqueçamos aqui de duas importantes constatações: (1) Getúlio Vargas acabou ficando conhecido como "pai dos pobres" e; (2) a comoção que tomou conta do país por acasião de sua morte, comprova em parte a eficácia da paternidade construída. Podemos negar o conceito de populismo, em tudo que tem de exagero, mas teremos de enfrentar um certo desconforto quando estivermos diante de documentos imagéticos...
Tal articulação, que Thomas Skidmore chama de maquiavelismo - doutrina do filósofo italiano Nicolau Maquiavel, segundo a qual "os fins justificam os meios" -, serviu aos fins de comando. Vargas cooptou os sindicatos, uma de suas peças-chave, onde havia a figura do "pelego", uma espécie de agente duplo, liderando os trabalhadores nos trâmites que possibilitava a obtenção de direitos, em verdade uma forma de sedá-los. O pelego tinha como função intermediária evitar maiores atritos entre os patrões e os trabalhadores; o governo regulamentava de cima para baixo, ditando as regras do jogo, desde o peleguismo – o termo foi depois ressignificado, "pelego" hoje refere-se a qualquer um que não adere a uma greve ou a ela não se submete inteiramente, ou são atores que visivelmente compõem a camarilha dos opressores -, passando pela outorga de benesses – em verdade reivindicações que nesse momento varrem o mundo do trabalho -, até apontando quais profissões são pertinentes à sindicalização. Nesse contexto, a Carteira de Trabalho, criada por Vargas, constitui outro trunfo; embora associada à consolidação das leis trabalhistas, por outro lado funcionava como mecanismo de controle, espécie de agenda do trabalhador, por ela se ia até seu portador e a fim de auscultar-lhe as andanças...
Essa forma de governar acabou por projetar Vargas na História, e seu nome ficou vinculado à consolidação dos direitos trabalhistas. Do trabalho braçal foi retirado a vergonha que herdava da escravidão, cujo espectro ainda vigorava embora sutilmente. Era preciso ressignificar o trabalho, pois se era verdade que os escravizados construíram a riqueza do Brasil, desde o escravismo colonial, necessário se fazia expurgar a vergonha do imaginário nacional, o que o caudilho fez ao inventar o trabalhismo; as argumentações de Marcondes Filho, então ministro do Trabalho, em um programa semanal de rádio, que giravam em torno do valor do trabalho, da conquista de leis trabalhistas e sociais como sendo um "presente" do presidente da República, além do reconhecimento da cultura nacional e desenvolvimento econômico, sedimentou o prestígio de Vargas junto aos trabalhadores.
Ampliando um pouco a questão, nenhuma peça pode sair da engrenagem que faz o homem capitão de sua alma, o construtor de sua própria história. Vargas foi uma importante peça em meio à engrenagem que fazia mover as ações próprias do universo trabalhista brasileiro, que tento aqui grafar como uma nota. O seu maquiavelismo, é fato, existiu, porém não podemos cair naquilo que os conceitos às vezes têm de escorregadio. Alguns só fazem sentido para uma época, como o populismo, trazido a lume nos anos 1960 por analistas que anelavam explicar o sucesso de Vargas junto aos trabalhadores, cujo ponto principal, em meio aos seus pressupostos, é o tema do poder quase onipotente de manipulação, capaz de embromar toda a liderança sindical do período, bem como, recorrendo ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), com a mesma maestria, mesmerizar o operariado e todo o senso comum, tornando-os a si adstritos.
O que quero, para finalizar, é ressaltar que tanto a História do Brasil, linkada às ocorrências de outras partes do globo, quanto o caminho individual dos atores aí envolvidos, se encontram de uma vez para sempre dentro de uma interpretação que não pode ser construída de forma estanque, forjando conceitos no caminho do sentido. A historiografia tem procurado reavaliar o que foi dito antes sobre o assunto - as conceitualizações isoladas, e peremptórias - , procurando questionar que a suposta subordinação mecânica preconizada realmente não existiu, pelo menos não de uma forma que apenas do lado governamental houvesse ganho efetivo de interesses, porém existiu como uma troca - como afirma Lincoln de Abreu Penna, em seu livro “República Brasileira”, ao abordar o revisionismo historiográfico sobre o conceito de populismo - que, embora tardiamente, favoreceu também as conquistas dos trabalhadores, eliminando assim uma via de mão única – interpretação, aliás, como a caiopradista ao abordar a corrida abolicionista.
Seja como for, Vargas ficou nos braços do povo, como se convencionou dizer, mas sua estratégia de governar, jogando com os trabalhadores e com seus representantes, além de cuidar da oposição dos setores partidários, não arrefeceu a luta do operariado, nem apagou um certo pensar revolucionário de boa parcela do povo brasileiro, que a meu ver persiste ainda hoje embora meio informe e/ou ressignificado. Um amigo historiador, marxista ortodoxo, vaticinou há uns três anos atrás, que o mundo estava em estado de espera revolucionária, como o ar contido em uma garrafa que estava já sendo agitada... Longe de pensar apressadamente sobre o fenômeno que ora toma conta das manchetes - protestos populares, caça aos ditadores, instabilidade econômica - , dizendo que é isso ou aquilo, algo já se pode reafirmar sobre o homem, de uma maneira geral - é ele o que faz a História, não é a superestrutura que o define e plasma, apesar de governado pelas circunstâncias - como asseverou Heródoto, o "Pai da Historia" -, o homem é por excelência livre, não podendo contê-lo por muito tempo nenhuma situação adversa...
Como perceberam os historiadores que revisaram o populismo e o maquiavelismo varguistas, nada pode ser mais contrário à lógica em História do que pensar que as pessoas são páginas em branco, onde os canais do poder instituído podem escrever ali o que quiserem, fazerem eles a história como heróis, e sem reações contrárias.
Eleandro Madureira
Volta Redonda
06 X 2011
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